18 de abril de 2014
A restauração de bens históricos é
competência do profissional arquiteto e urbanista, segundo a legislação
existente e as resoluções internas do CAU. O conhecimento técnico e teórico
necessário para propor uma restauração, no entanto, ainda passa longe de
integrar efetivamente os currículos. Este conhecimento específico está restrito
às pós-graduações profissionalizantes, que ainda são poucas e, devido a geral
não exigência de especialização para assumir uma obra de restauro, tornam-se
pouco atrativas.
O efeito Dona
Cecília está presente em muitas obras de restauração.
O resultado deste lapso de informação
e de formação é a agressão contínua a bens patrimoniais de importância ímpar,
que são submetidos a intervenções equivocadas ou até desastrosas que aceleram
sua degradação, desfiguram seu aspecto volumétrico ou mesmo implicam
praticamente na perda total do bem.
Antes de mais nada: Existem casos e casos
É preciso sempre deixar muito claro
que patrimônio cultural é diverso e não um conceito fechado e absoluto. Existem
diferentes tipos de valores, e diferentes intensidades de importância destes
valores, que podem ser atribuídos aos bens culturais.
Existe, portanto, aquele bem que pode
ser inventariado como patrimônio cultural ainda que não tenha grandes valores
artísticos ou históricos – mas em contrapartida, compõe paisagem ou pertence a
uma tipologia característica do local. Estes bens patrimoniais normalmente se
prestam a receber intervenções mais profundas, desde que mantenham suas
características principais (volumetrias, ritmo de fenestrações, etc).
E existem aqueles bens que tem enorme
relevância arquitetônica e/ou histórica, bem como paisagística, documental,
social e etc. que, por suas características únicas, merecem muita prudência,
sensibilidade e cuidados ao receberem intervenções recuperativas. Isso não
significa que não possam ser adaptados e receber anexos, e sim que essas
adaptações anexos devem ser elaboradas com todo cuidado e seguindo diretrizes
de preservação.
Jogo dos 7, ou
mais, erros.
É importante frisar que o senso comum
de “manter apenas a fachada” é bastante perigoso e equivocado. Faz-se
necessário analisar sempre muito bem os valores de cada bem histórico, para que
se defina o que nele é importante e o que eventualmente possa não ser.
Intervenções desastradas
Recentemente o caso da desfiguração
de uma pintura religiosa promovida pela “dona Cecília” teve grande repercussão
na mídia internacional. A deformação de uma obra de arte é bastante fácil de
reconhecer. Já a deformação de obras de escultura e de arquitetura muitas vezes
passam despercebidas, devido aos poucos bons referenciais estéticos e culturais
da população.
O efeito “dona
Cecilia” – na arte visual é fácil de reconhecer. Já tentou em edificações?
O tema torna-se delicado e difícil
pois, para o senso comum, qualquer obra recuperativa seria melhor do que o
abandono. O problema é que as obras recuperativas equivocadas acabam sendo tão
agressivas para a preservação do bem histórico quanto o abandono. A analogia
com a pintura anteriormente apresentada é válida – será que esta “recuperação”
salvou a pintura? Será que estas reformas desastrosas salvam, de fato, os bens
históricos?
O senso comum considera restaurada a
edificação que após algumas obras fica em aparente bom estado, com tinta fresca
colorida e “ bonita”. A questão, no entanto, é muito mais complexa: além do
conceito de “beleza” ser muito relativo, soluções técnicas inadequadas, mesmo
com intenção de recuperar, costumam inclusive piorar a saúde da edificação.
Podemos citar como alguns exemplos
mais recorrentes o uso de reboco composto por cimento em edificações
incompatíveis (deixando as paredes rapidamente com reboco craquelado – o que
facilita infiltrações pluviais); uso de tintas inadequadas – como a latex
acrílica ou até a antipixação – sufocando as paredes antigas (que rapidamente
se destacam da parede, gerando bolhas que igualmente facilitam infiltrações);
construção de lajes, proto-lajes e outros tipos de coberturas ou anexos
contíguos a edificação histórica com técnicas inadequadas, gerando áreas de
contato problemáticas que facilitam infiltrações, exposição indevida de
madeiramentos que passaram décadas escondidos por reboco, expondo material
frágil às intempéries, envernizamento de taipas de barro; aterramento de porões
e fechamento dos respiros, causando umidade ascendente e prejudicando a longo
prazo até mesmo as fundações, entre tantos outros inúmeros desastres.
Efeito do uso de
tinta inadequada. Bonitinha, mas ordinária!
As intervenções inadequadas são muito
mais dispendiosas a longo prazo, visto que geram novas patologias e até
problemas estruturais graves que precisarão ser corrigidos; e principalmente,
descaracterizam o conteúdo cultural da edificação, agredindo o direito à
memória de todos os cidadãos. A descaracterização dos bens históricos
protegidos por lei é gravíssimo, pois torna questionável todo o esforço pela
preservação, uma vez que derruba diretamente o principal objetivo que é a
manutenção da memória através do documento histórico (edificação e paisagem),
servindo a toda a sociedade
Reboco inadequado
para paredes com rejunte a base de barro e cal e seu efeito…
Torna-se, portanto, urgente e necessária
a maior difusão do conhecimento técnico de restauração de bens históricos,
tanto para o projeto quanto para a execução das técnicas tradicionais. Ainda
mais urgente é a evolução das políticas de patrimônio cultural, para que de
fato contemplem e possibilitem que proprietários de imóveis particulares
tombados ou inventariados financiem a recuperação dos imóveis com
assessoramento técnico adequado. E o aparelhamento dos órgãos de preservação
nacional e estaduais, permitindo que contribuam no processo de estabelecimento
de diretrizes, aprovação de projetos e acompanhamento das obras mais
importantes, uma vez que ainda é numericamente impossível que cada Prefeitura
mantenha técnicos capacitados nesta área.
Enquanto a questão não evoluir,
continuaremos nos deparando com inúmeras restaurações com o padrão “dona
Cecília”.
Jorge Luís Stocker Jr., estudante de
Arquitetura e Urbanismo, delegado regional da Defender no Vale do Sinos e
Encosta da Serra
Fonte: dzeit.blogspot.com.br
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